domingo, 12 de julho de 2009

Um outro Chile

Tenho propagandeado o Chile entre os amigos e, vez por outra, alguém que pensava mesmo em ir até lá, resolve descobrir o que há de tão interessante nesse lugar do qual falo com tanto amor que escolhi viver no Chile algumas horas do meu dia - seja lendo o Mercurio, seja ouvindo a rádio Bio Bio, por exemplo.

O Maikel, amigo novo (exatos três anos neste mês de julho) foi um que apostou, pagou pra ver e foi conferir em pessoa o que é que o Chile tem. Pelo que sei, gostou. Acontece que o Maikel mantém um blog (ababelado mundo) em que deixa fluir o que lhe vem à mente ou lhe passa pelo corpo com mais talento do que ele acha que tem - os textos são saborosos.

Depois de voltar do Chile, onde encantou-se por Valparaíso, Maikel publicou suas impressões em seu blog. Como este blog aqui pretende ser uma coletânea de impressões pessoais não apenas minhas, mas reunir amigos que gostem do Chile e seus relatos sobre coisas chilenas, contrabandeei o texto do Maikel para cá - nele você poderá conhecer um outro Chile, que eu jamais poderia lhes mostrar. Abre aspas.


Se me perguntarem qual a melhor coisa do Chile, minha resposta será: os chilenos. Mas não só eles. Também os australianos, os ingleses, os americanos, os franceses, os portugueses e os argentinos que conheci entre Santiago e Valparaíso, na terra que, um dia, foi habitada pelos Mapuches e, há algumas décadas, foi remodelada por Pinochet.
Bebi muito vinho, mas não visitei nenhuma vinícola. Vi a cordilheira do alto (e foi a coisa mais linda que já vi do céu), mas não estiquei minha viagem até o Vale Nevado. Tirei fotos da Plaza de Armas, mas não acordei cedo para ver a troca de guarda em frente ao palácio de La Moneda. Sobre a história do Chile, aprendi mais no tête-à-tête com os santiaguinos, entre um bar e outro, do que nos museus e nas visitas guiadas. E acho que não poderia ter escolhido melhor caminho para descobrir de onde vem aquela vontade de vida que brota das poesias de Neruda.
A sobriedade europeizada das construções neoclássicas e a simetria das praças de Santiago escondem uma atmosfera efervescente. É preciso vasculhar os escombros de uma cidade esmagada pelo peso dos anos de chumbo para encontrar, sob as ruínas, formas de vida tão pitorescas quanto encantadoras. Sob o cinza do progresso (falo da nuvem de poluição que encobre o céu de Santiago), encontramos os extremos de um país que oscila entre uma animada “Marcha de la Marihuana” e um mar de católicos que corresponde a 70% da população. O país que canta ligalaaiiiize-ê ao som de Peter Tosh é o mesmo que só legalizou o divórcio em 2004!
Mas o contexto histórico do país está melhor descrito nos guias turísticos, que você pode comprar em qualquer aeroporto antes de voar em direção às cordilheiras. Logo, deixemos isso com quem sabe e falemos aqui do Chile que eu conheci, da atmosfera que experimentei e dos subterrâneos que percorri.
Meu primeiro contato com o Chile se deu pela janelinha do avião e, já nesse primeiro encontro, tive a certeza de que nos daríamos bem. A cordilheira é assombrosa! Creio que poucas paisagens do mundo são capazes se assumir contornos tão imponentes quando vistas do alto. É uma sucessão de montanhas e vales sem fim. A milhas de distância é possível avistar riachos que, do alto, não passam de filetes de água a rasgar, modestamente, o pouco espaço entre os imensos cones nevados que fazem as catedrais góticas parecerem brincadeira de criança. Com o perdão do lirismo: a visão da cordilheira é comovente.
Em terra, fui recebido por uma Santiago ensolarada. No caminho para o albergue Forestal, no bairro Bellavista, pude identificar os traços de progresso que ainda pipocam, por todo canto, no laboratório do neoliberalismo na América Latina. O que mais se faz em Santiago é construir. Há obras por todo lado. Mesmo em meio à tranqüilidade dos parques, dá pra sentir a intromissão do capital, que reverbera ao som das britadeiras e das marretadas. A rusticidade artesanal da Casa de Neruda, que nos tempos do poeta, possuía uma das mais belas vistas da cordilheira, é hoje obscurecida pela imponência dos prédios que brotam por toda Providência. Gigantesco, rivalizando infantilmente com a supremacia da montanha, está, em primeiro plano, o prédio de uma companhia telefônica. Tem quem goste, mas duvido que este cenário fosse capaz de inspirar, em Neruda, o lirismo de outrora.
Falei da casa do poeta porque foi essa a primeira visita “obrigatória” que fiz em minha passagem por Santiago. Era domingo e, depois de uma breve pesquisa na internet e uma consulta aos guias que trazia comigo, descobri que esse é um dia de pasmaceira na capital chilena.
Como estava em Bellavista, saí para uma caminhada pelo bairro e aproveitei para visitar La Chascona (a descabelada), que é como Neruda batizou sua casa na capital, em homenagem à última de suas três esposas. Os chilenos que me perdoem, mas nunca considerei Neruda um grande poeta. Estou com seu amigo argentino, Borges, que o preferia o homem ao artista. A visita só reforçou em mim esse sentimento. A abundância de bares e as particularidades do lar de Neruda levam-me a crer que esse era um daqueles caras com os quais sentimos imenso prazer em dividir uma botilla de vinho e deixar a conversa fluir ao sabor do vento.
Talvez por isso os barcos sejam a inspiração arquitetônica de Neruda para a construção de suas caras. Acredito que, mesmo sem saber nadar, ele era aquele tipo que sabe que o navegar é preciso e o viver, não.
***
Creio já ter dito que o melhor do Chile foram as pessoas que conheci. Santiago, em si, não me pareceu a mais rica de encantos. Para quem, como eu, acostumou-se ao caos algo loco do Rio de Janeiro, a atmosfera pacata das ruas da capital chilena não despertam nenhuma euforia. Mas eu concordo com meu amigo que diz que moraria em Santiago. De minha parte, não pela tranqüilidade, não pelas conquistas de Pinochet; não pela limpeza, nem pelas praças; nem pela noite, nem pelos bares; mas pelos corações, sim.
Não ignoro o coração que me encantou foi o mesmo que deixou nascer uma das ditaduras mais cruéis da América Latina. Não ignoro que o coro formado pelo bater silencioso desses corações burgueses serviu para abafar os gritos que saiam dos porões, dos cárceres (e dos estádios) chilenos nos anos de chumbo. Mas tenho cá em mim um pouco dessa bondade enviesada que nos leva trilhar descaminhos que percorremos sem saber como e nem por quê. Vem daí minha condescendência.
***
Descaminhos que levaram à prisão o “fantasma” que conheci no Ex-carcel, uma prisão de Valparaíso que virou centro cultural. Estava lá, um espectro, a lavar as roupas que usava na lida. “Puedes llegar, no soy ningun fantasma”, disse, sem demora, engatou uma conversa mui rica e contou do caminho que o levou da prisão ao voluntariado nos muros que nos cercavam. De como ele, outrora torturado, tornara-se ator e chegara a interpretar seu algoz, num filme sobre atrocidades do regime chileno, anos depois.
***
O Chile se revela assim, aos poucos. Como os grafites que surgem, de repente, no virar de uma curva, nos labirintos multicoloridos de Valparaíso.
***
Muitas das pessoas com as quais falei sobre o Chile no Brasil repetiram uma postura clássica quando lhes disse que adorei Valpo. A reação era, invariavelmente, de revolta ou de encontro. Revolta, para os que odeiam a cidade com toda convicção – parece uma favela, odiei aqueles becos, parece uma Ouro Preto piorada; encontro para os que, como eu, descobriram o que a cidade não mostra: sua gente, sua vontade de vida e de cultura, sua diversidade . Não sei se é a proximidade com o mar, se é o pôr-do-sol estonteante, que se pode apreciar do Cerro Bellavista, ou se é só um desejo de ser outro que faz das pessoas de Valparaíso seres tão agradáveis. Talvez seja apenas a ausência daquela casca-grossa que o progresso impôs a Santiago…
***
Aos casais, recomendo explorar Santiago. Há lá os vinhos, os parques, as praças, os cerros e toda uma miríade de programas pra lá de românticos. Aos aventureiros, digo: peguem suas mochilas e piquem a mula para Valparaíso. Se gostar de cachorro, hospede-se no El Yoyo e conheça o Chico, um labrador simpático (e menos pulguento do que parece) e deixe ele sentar no seu colo enquanto você conversa com os outros vagabundos iluminados que, como você, estarão planejando a próxima incursão noturna pela cidade, que ferve de segunda a sexta. A todos, eu desejo a boa sorte de conhecer um grupo de europeus malucos como o que eu conheci, mas, se os astros não ajudarem, você poderá sair com Maxi e Natália, que trabalham lá mesmo, no albergue, e não vão hesitar na hora de partir com os hospedes para a balada mais próxima. Seja no Huevo ou no Coiote Quemado, a diversão é certa.
***
Mas – vá lá! – eu estaria faltando com a verdade se dissesse que Santiago não tem seus encantos também para as pessoas de alma em formação. Procure com paciência e você vai chegar a lugares como El Terremoto, um misto de bar e restaurante que, à noite, vira um imenso salão de festas onde se pode dançar Cueca com as nativas.
Cueca é o nome de uma dança tradicional chilena. Que os desavisados não entendam mal. Não há relação entre a dança típica dos chilenos e as famosas festa do cabide (se sua intenção é essa, vá a um dos cafés com piernas que pipocam no entorno da Plaza de Armas e você terá mais sucesso). A Cueca é, como toda a dança típica, algo mui sério. Embora simule o ritual de acasalamento dos galináceos, como me explicou um santiaguino – que, por sinal, tocava numa das bandas que se apresentou no El Terremoto – a Cueca não envolve toque. Nada daquele clima de preliminar que envolve o zouk, a lambada ou o forró. Longe disso. A Cueca nos ensina a flertar ao longe, sem tocar. Como manda a natureza, na Cueca, cabe ao galo exibir-se e à galinha esquivar-se. De lenço na mão, o cabra precisa esforçar-se para atrair os olhares da fêmea da espécie e para isso vale quase tudo: girar, rodar o lenço no alto, feito crista, ou bater os pés no chão, feito esporas. O resultado é uma coreografia desordenadamente linda, onde os casais flanam pelo salão, cada um à sua maneira, formando um conjunto que, a princípio, pode parecer esdrúxulo, mas aos poucos se faz deveras sedutor.
Se faltar coragem, os mais tímidos podem recorrer a uma dose do drinque que dá nome a casa,o Terremoto, uma mistura perigosa de vinho branco suave, aguardente e sorvete (uma bola que bóia acintosamente sobre um copo gigantesco). O efeito só chega no dia seguinte e é capaz de fazer temblar os mais fracos. Mas o efeito imediato é mui recomendado.
***
Faça amigos no Chile. Ou amigas, como eu fiz. Elas vão apresentar você à melhor empanada de Santiago (num lugar que, a priori, você jamais entraria, por imaginar tratar-se de uma casa onde os donos ouvem boleros e lêem jornal de porta aberta) e, nesse lugar, numa conversa desinteressada, você seria informado sobre o show do Chico Trujillo, que acontecerá – sem divulgação prévia – numa boate de nome Clandestino (sem letreiros na porta). Lá você só chegaria depois de conhecer La Piojera – “o bar 100% chileno”, freqüentado por Manu Chao – e descobriria um cantor pitoresco, que não se sabe ao certo de onde veio – se de Barcelona ou da Itália – e que toda uma mistura de reggae e música cigana que, sabe lá Deus por que, soa muito agradável e cheia de suingue.
***
E isso é tudo que eu tenho a dizer sobre o Chile que não consta nos Guias que você pode comprar nos aeroportos do Brasil ou de Buenos Aires. Sei que se trata de uma descrição pessoalíssima, que não ajuda muito aos marinheiros de primeira viagem que querem fazer no país uma incursão menos alucinada, mas espero que, nas pessoas certas, este breve relato de minha passagem por aquelas terras possa despertar a curiosidade necessária para explorar um país que, como as dançarinas de Cueca, pode parecer esquivo, antes de mostrar-se encantador.

Suerte!